sexta-feira, 22 de maio de 2015

Enedina Alves Marques, a primeira engenheira negra do Brasil (1913-1981)

Enedina Alves Marques foi a primeira mulher e primeira negra a graduar-se em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná, em 1945. A engenheira participou da construção da Usina de Parigot de Souza e trabalhou na Secretaria Estadual de Educação, entre outros locais.


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Em agosto de 1981, o jornal Diário Popular tinha a matéria de capa que pedira aos infernos. Uma senhora fora encontrada morta em seu apartamento, na Rua Ermelino de Leão, Centro de Curitiba. O porteiro sentira falta da moradora, chamou a polícia e a imprensa veio atrás. A foto da “falecida” saiu sem pudores, na cama, em camisolas, um tratamento dado aos “presuntos”, no jargão da imprensa policial. Houve quem não gostasse, com punhos e coração.

A vítima se chamava Enedina Alves Marques, tinha 68 anos e fora a primeira engenheira negra do Brasil. Morreu de infarte. Indignação. Seus companheiros de ofício fizeram uma grita nas páginas da revista Panorama. O Diário se retratou. Afinal, as vitórias de uma mulher negra e pobre que figurou entre os seletos bacharéis de Engenharia da UFPR, na década de 1940, deveria constar nos anais da República, e não na manchete sanguinolenta de um tabloide.

Deu resultado. Enedina virou placa de rua no Cajuru. Ganhou inscrição de bronze no Memorial à Mulher Pioneira, criado pelas soroptimistas – organização internacional voltada aos direitos humanos, da qual participou. Mereceu biografia assinada por Ildefonso Puppi. Seu túmulo, no Municipal, é mantido com respeito pelo Instituto de Engenheiros do Paraná. Tempos depois, batizou o Instituto Mulheres Negras, de Maringá.

Aos poucos, descansou em paz. Paz até demais. O centenário de nascimento de Enedina, em janeiro deste ano, passou em branco. Poderia ter sido celebrado pari passu com o de sua contemporânea, a poeta Helena Kolody, com quem, suspeita-se, teria estudado. Sim, antes de engenheira foi normalista e civilizou os sertões de Rio Negro e Cerro Azul, saindo das lides de doméstica e de “mãe preta” para a de titular de uma sala de aula.

Eu mesmo, confesso, nunca tinha ouvido falar dela até semana passada, quando meu vizinho, Darcy Rosa, estufou o peito para contar que tinha trabalhado com Enedina na Secretaria de Viação e Obras. Publicamos a declaração. Foi o que bastou: súbito vieram mensagens revelando a catacumba onde se reúnem os cultores dessa mulher.

O cineasta Paulo Munhoz prepara um documentário sobre ela, em parceria com o historiador Sandro Luis Fernandes. A casa de Sandro, no São Braz, virou um pequeno memorial de todo e qualquer documento que traga informações sobre a engenheira. São raros, dispersos e imprecisos. Bem o sabe o estudante baiano Jorge Santana. Há dois anos, ele pinça toda e qualquer pista sobre Enedina para uma monografia no curso de História da UFPR. A pesquisa promete. Há fortes indícios de que Enedina sofreu perseguição racial nos bastidores da universidade.

Formou-se aos 31 anos, sem refresco, depois de uma saga nas madurezas. Vingou-se ao se aposentar, na década de 1960, como procuradora, respeitada por sua contribuição à autonomia elétrica do Paraná. Conheceu o mundo. Morava num apartamento de 500 metros quadrados. Impôs-se entre os ricos por sua cultura, 12 perucas e casacos de pele. Desconhece-se que tenha feito odes feministas ou em prol da igualdade. Ou que fizesse o tipo boazinha para ser aceita. Pelo contrário. Talvez Enedina tenha sido mais admirada que amada. É o que a torna ainda mais intrigante.

As pesquisas de Sandro e de Jorge – ambos negros – já tiraram Enedina do campo dos panegíricos, que se limitam a pintá-la como alguém que venceu pelo próprio esforço. É um discurso bem conveniente, como se sabe. Tudo indica que não se trata de uma biografia isolada, ainda que pareça.

A mulher baixinha, magérrima e durona sabia se impor entre os homens – com os quais gostava de beber cerveja. Enfrentava a lida nas barragens como um deles, armada se preciso fosse. É uma heroína perfeita para um longa-metragem. Nasceu de uma gente humilde do Portão. Era única menina numa casa de dez filhos. A mãe, Virgília, a dona Duca, ganhava uns trocos como lavadeira. O pai, Paulo, está na categoria “saiu para comprar cigarros”.

Mas não é tudo. Enedina teria feito parte de uma rede de resistência da comunidade negra paranaense, pré-Black Power, da qual pouco se ouve falar. As vitórias que teve desmentem a propalada passividade desse grupo diante das migalhas que lhe foram reservadas. O destino dela teria mudado ao cruzar com a família de Domingos Nascimento, negro de posses da Água Verde, e com os Heibel e os Caron, brancos progressistas que acabaram por se tornar os seus.

Nesses redutos não teria encontrado apenas um horário para estudar ao lado do fogão de lenha. Ali, suspeita-se, passou de Dindinha, seu apelido, a Enedina, a primeira engenheira, mas também uma das primeiras negras de fato alforriadas de que se tem notícia. Eis o ponto.


JOSÉ CARLOS FERNANDES
jcfernandes@gazetadopovo.com.br
Gazeta do Povo - Curitiba-PR

Por

Cineasta, roteirista, cronista, ilustrador, educador, nascido na Vila Santa Isabel, Zona Leste de São Paulo.

11 comentários:

  1. NAQUELE TEMPO NÃO HAVIA COTAS...

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    1. Preguiça de ler seu comentário... Ela foi uma exceção é deve ser grande pelos seus feitos, admirada pelas suas qualidades, mas não deve ter seu exemplo de vida imposta a todos. Outros fatores contribuirão para o alavancar da carreira dessa grandíssima mulher, não foi tão somente a meritocracia difundida nessa sua simples frase, porém, cheia de leques para outras interpretações que ultrapassam a condição humana individual.

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  2. Parabéns pela postagem incrível!
    Adorei o conteúdo.

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  3. Como a história precisa e necessita ser desvelada, revelada desmascarada. Ainda bem que a história muda a sua própria história

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  4. Enedina era pessoa constante em nossos almoços de domingo e jantares de sexta-ffeira em família, eu era criança e ela era considerada minha "madrinha de boca" pois minha família é espirita e não há batismo. Ela era uma pessoa de humor inteligente e seco, muito educada e fina, personalidade forte, de conversa agradável mas nada fútil. Lembro de suas colocações sempre espirituosas em frases diretas. Nas vezes que vinha nos almocos e jantares em casa, sempre trazia uma torta deliciosoa de milho feita por ela mesma, que trazia por delicadeza com a nossa família mais inclinada ao vegetarianismo, pois ela detestava "mato" como dizia frente ao prato de saladas, adorava carnes e cerveja. Uma das coisas que costumava dizer com frequência era que ela era o exemplo vivo de que os negros reclamavam muito e faziam pouco, que racismo era desculpa para a preguiça de arregaçar as mangas e fazer alguma coisa por si mesmo. Como disse, ela era mesmo durona. Grande mulher, grande personalidade. Parabéns pela matéria.

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  5. Enedina era pessoa constante em nossos almoços de domingo e jantares de sexta-ffeira em família, eu era criança e ela era considerada minha "madrinha de boca" pois minha família é espirita e não há batismo. Ela era uma pessoa de humor inteligente e seco, muito educada e fina, personalidade forte, de conversa agradável mas nada fútil. Lembro de suas colocações sempre espirituosas em frases diretas. Nas vezes que vinha nos almocos e jantares em casa, sempre trazia uma torta deliciosoa de milho feita por ela mesma, que trazia por delicadeza com a nossa família mais inclinada ao vegetarianismo, pois ela detestava "mato" como dizia frente ao prato de saladas, adorava carnes e cerveja. Uma das coisas que costumava dizer com frequência era que ela era o exemplo vivo de que os negros reclamavam muito e faziam pouco, que racismo era desculpa para a preguiça de arregaçar as mangas e fazer alguma coisa por si mesmo. Como disse, ela era mesmo durona. Grande mulher, grande personalidade. Parabéns pela matéria.

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  6. Parabéns pela matéria! Sou neta dos Heibel e Caron, afilhada de Enedina. Nesta mulher durona encontrei um amor e carinho sem fim. Meu exemplo!

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  7. Valeska de Gracia, que Enedina dissesse que " racismo era desculpa para a preguiça (dos negros) de arregaçar as mangas e fazer alguma coisa por si mesmo." é facilmente compreensível, pelo contexto do tempo em que vivera, tempo este, onde não havia um empoderamento e melhor esclarecimento sobre o debate das questões raciais, portanto, muitos negros acabavam por reproduzir um discurso da elite branca e dominante. Contudo, hoje, quem estuda um mínimo, sabe que em determinado momento da história, diversas teorias e conceitos foram "elaborados" para estabelecer científica, cultural e, consequentemente, politicamente a supremacia de uma raça sobre outras. Logo, o racismo não é uma ficção dos negros. E o debate sobre o mesmo existe, justamente, em função de acabar com discursos como esse, que você afirma ser de Enedina. O racismo não é uma invenção dos negros, mas o debate sobre ele pode ser sim. Se o racismo não existisse ou, se no tempo de Enedina o debate sobre ele estivesse tão em voga como hoje, com toda a notoriedade profissional que teve, ela poderia ter tido melhor sorte ao ser retratada no seu leito derradeiro. Vc concorda? "A foto da “falecida” saiu sem pudores, na cama, em camisolas, um tratamento dado aos “presuntos”, no jargão da imprensa policial..." , "figurou entre os seletos bacharéis de Engenharia da UFPR, na década de 1940, deveria constar nos anais da República, e não na manchete sanguinolenta de um tabloide." "Seus companheiros de ofício fizeram uma grita nas páginas da revista Panorama. O Diário se retratou". Portanto, se Enedina afirmou que o racismo era desculpa para a preguiça de trabalhar, qual seria a explicação para essa desconsideração para com seu corpo e sua morte? Provavelmente, Valeska, seria a mesma explicação para o seu comentário capcioso.

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  8. Sou negro... meu avô (nasceu no Recôncavo baiano) foi um grande carpinteiro, músico e, pasmem, político!... dizia ao meu pai: "...melhor filho, o que tem muito nesta terra é, preto descarado!..."

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  9. ...não sei se isso, era uma autocrítica (...), uma triste constatação (diante do "espelho da vida"...) ou até, uma maldição... felizmente, que atinge poucos; lembro-me, por exemplo, das críticas feitas aos negros: Colin Powell e Condoleeza Rice, pelo ator Harry Belafonte (tb negro) na ocasião da Invasão do Iraque...

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© 2013 Rogério de Moura